quinta-feira, setembro 29, 2005

“Ô Cride, fala pra mãe...” - Reinaldo Azevedo

"Ô Cride, fala pra mãe..."
Por Reinaldo Azevedo

É evidente que eu sei que os espadachins da reputação alheia dizem por aí que escrevo textos reacionários, "de direita". Dizem-no como se fosse pecado mortal ou moral, já que identificam com essa tal "direita" tudo aquilo que consideram ruim ou nefasto — ou, como diria Marilena Chaui, tudo o que agride a igualdade. Como aprendi com Madame, na sua tele-aula na TV Cultura, que não se pode falar em ética sem falar na dita-cuja, ser "de direita" corresponderia, pois, a ser aético e, então, um homem mau e defensor da injustiça, do desequilíbrio de direitos — o que também corromperia outro princípio ético: a liberdade. Assim, quando essa gente crava a pecha "de direita", quer dizer, na verdade, um sujeito mau, desprezível, desses que a gente não deve tolerar no salão, a ser banido a cusparadas de indignação progressista.

É por isso que a esquerda, ao longo da história, matou tanto e tão continuamente. Como ela o fazia em nome da igualdade e da liberdade, todos os seus assassinatos foram éticos. Tal visão está presente ainda hoje, inclusive no jornalismo, especialmente naquele desinformado, inimigo da história e da teoria política. O que me leva a escrever este texto é a morte de Apolônio de Carvalho, ocorrida na última sexta, que se fez acompanhar, na imprensa, de panegíricos encharcados de má-fé, burrice e lágrimas.

Lamento a morte de Apolônio como John Donne lamentava a morte de todo homem, com nem mais nem menos cuidado retórico. Meus sentimentos também dobram por ele e tal. E mando minhas condolências. Mas não tenho a menor nostalgia de suas idéias — tampouco quero crer que tenha levado consigo utopias que um dia tenham valido a pena. Pior ainda é tentar fazer de sua história uma espécie de exemplo de consistência e coerência em contraste com o PT de Lula-Delúbio. Uma pausa para outra reflexão e já volto a esse ponto.

Que a democracia não seja um valor universal entre as esquerdas — e também para alguns setores da extrema direita —, isso posso compreender. Não se pode, obviamente, defender um regime totalitário, como é o caso do socialismo, e posar indefinidamente de democrata amoroso. Quando aparece a situação prática em que esse amor é testado, a primeira coisa que essa gente faz, a exemplo de Madame e seus vassalos mentais, é atirar contra as instituições democráticas, tratadas como deformidades ideológicas a serem vencidas por quem porta a verdade e o futuro: a classe operária. Como ela já morreu, resta-lhes a distopia do horror burocrático: rigorosamente essa estrovenga que o PT decidiu fazer no Brasil.

Compreendo esses caras. O que me deixa constrangido é ver até a imprensa que Madame chama "burguesa" submeter a biografia de Apolônio a um retoque, fazendo do homem não mais do que um poeta que lutou ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola ou que integrou a Resistência na França. Tratou-se como pormenor um dado óbvio de sua história: a participação na tentativa do golpe comunista de 1935, a tal "Intentona". Ela existiu, deixou mortos e se fez de forma covarde, pusilânime, traiçoeira. Especialmente em se tratando de soldados. Omitiu-se o fato de que todas as suas lutas eram travadas a serviço e sob as ordens do Comintern — a Internacional Comunista comandada por Moscou.

Em novembro de 1935, mês da Intentona, Apolônio era segundo-tenente do Exército brasileiro. E participou do delírio de Luiz Carlos Prestes, que havia assegurado a Moscou que o seu "golpe" seria seguido por uma rebelião das massas. Sugiro que os leitores façam uma pesquisa caso se interessem. Na biblioteca, e talvez só lá, vocês encontram A Revolta Vermelha, de Hélio Silva (ninguém vai reeditar a obra no Brasil?), e Anarquistas e Comunistas no Brasil (1900-1935), de John W. Foster Dulles. Nas livrarias, há o excelente Camaradas nos Arquivos de Moscou, do jornalista William Waack.

Não! A Intentona não foi uma palhaçada getulista, à moda do Plano Cohen (pesquisem também) para justificar um golpe de Estado. Ao contrário: estava em curso um governo constitucional e reformista, e os comunistas decidiram depô-lo na base das baionetas. O centro da conspiração era a rebelião nos quartéis. Nada menos de 28 soldados foram assassinados por seus pares — alguns enquanto dormiam. As vítimas defenderam a ordem constitucional e deram sua vida por ela. Ninguém lhes canta as glórias. Seguem seus nomes em ordem alfabética. Volto em seguida.

— Abdiel Ribeiro dos Santos
— Alberto Bernardino de Aragão
— Armando de Souza Mello
— Benedicto Lopes Bragança
— Clodoaldo Ursulano
— Coriolano Ferreira Santiago
— Danilo Paladini
— Fidelis Batista de Aguiar
— Francisco Alves da Rocha
— Geraldo de Oliveira
— Jaime Pantaleão de Moraes
— João de Deus Araújo
— João Ribeiro Pinheiro
— José Bernardo Rosa
— José Hermito de Sá
— José Mário Cavalcanti
— José Menezes Filho
— José Sampaio Xavier
— Lino Vitor dos Santos
— Luiz Augusto Pereira
— Luiz Gonzaga
— Manoel Biré de Agrella
— Misael Mendonça
— Orlando Henrique
— Pedro Maria Netto
— Péricles Leal Bezerra
— Walter de Souza e Silva
— Wilson França

Quantas lágrimas foram derramadas pela "utopia" desse pessoal? Nenhuma. Seus descendentes nem mesmo têm o direito de reivindicar um passado digno. Ao contrário: a história os trata como bandidos que resistiram à utopia. Fernando Morais, por exemplo, escreveu um livro contando a vida da judia alemã Olga Benario, mulher de Prestes. Ela era uma agente comunista enviada ao Brasil para fazer aquela maravilha. Só se destacam os aspectos heróicos da moça, bem como os do marido, saudado por sua retidão de caráter, seu estoicismo, sua convicção, sua crença em amanhãs gloriosos. Getúlio Vargas, com efeito, cometeu uma ignomínia ao extraditá-la, mais tarde — judia, comunista e grávida — para a Alemanha nazista. Foi morta num campo de concentração. Mas isso não refaz sua biografia nem muda a história do Brasil. Em nome do "progressismo", Prestes sai da cadeia em 1945 e adere ao movimento "queremista" (o "queremos Getúlio"). Como se vê, para certa ideologia, a morte tem valor apenas instrumental.

De Lula a uma boa parte da crônica política, todos fizeram questão de tratar Apolônio, o petista nº 1, como se ele jamais tivesse querido outra coisa na vida que não a democracia. De quantas outras pessoas que participaram de movimento que promoveu assassinato em massa, uma chacina, se diria a mesma coisa? Não, não era a idade avançada que despertava essa ternura por Apolônio: era a sua ideologia.

Quantas vezes, para citar uma personagem que não matou ninguém, mas também era chegada a um golpe, vimos os nossos críticos "isentos" a exaltar as qualidades de Carlos Lacerda? Ah, é verdade: ele era um direitista e vivia tentando solapar a democracia... Mas e Apolônio? Era, por acaso, um democrata? Compreenderia as lágrimas que caíssem sob a inspiração de John Donne, mas não as que li, como se também a democracia estivesse de luto. Tenham paciência! Desinformação? Ignorância histórica? Hoje em dia, em certos meios, é quase impossível alegar isso. Parece-me é que estamos diante de uma vitória intelectual inequívoca. Embora a esquerda fale permanentemente a linguagem do vitimismo, é óbvio que venceu batalhas e dá as cartas da interpretação, sobretudo na imprensa.

Tem importância?
Que importância tem essa velharia agora, às portas dos 70 anos da Intentona, em 27 de novembro? Aparentemente, nenhuma. De fato, tem toda. Reitero: ainda não entendemos a democracia como valor universal; ainda achamos que, em nome da "igualdade", da "liberdade", da "justiça", até o crime é justificável porque a gente precisa disso tudo para, como diria a outra, ser "ético". Ainda que o reino da ética tenha, então, de pegar o atalho do crime para apressar a história. A lição é de Lênin. Não desejava a morte de Apolônio. Não desejo a morte de ninguém. Mas lamento muito mais a de Ronald Golias. A realidade brasileira não merece nada além de uma caricatura.

Deixo Apolônio para Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, que queria promovê-lo a general. Teria sido um prêmio e tanto por sua participação no movimento que assassinou 28 de seus colegas de farda. É que Bastos se fez um milionário progressista de tanto defender outros tantos nem tão progressistas assim. Eu sou apenas um pobre reacionário.

"Ô Cride, fala pra mãe que vai ver o Márcio tá certo..."

Publicado em 28 de setembro de 2005.

2 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

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