J.R.    Guzzo
   "O Brasil será um país bem mais    arrumado
quando tomar a decisão de concentrar-se na 
multiplicação de    chances para quem está 
pior – e deixar em paz quem está melhor" 
   É raro passar muito tempo, hoje em    dia, sem que o brasileiro comum se veja acusado de alguma coisa. Se algo está    errado, se um grupo de pessoas tem um problema ou se alguém sofre um tipo    qualquer de injustiça, o cidadão já pode ir se preparando: a culpa    provavelmente é dele. A maneira de dizer isso é conhecida: "A culpa é da    sociedade". Ou: "A culpa é de todos nós". A culpa também pode ser "das    elites", ou "da classe média" – sendo pior, ainda, a situação dos que caem na    classificação "elites brancas" e, pior do que tudo, "elites brancas do    sul". A hipótese de que as pessoas atingidas por qualquer dificuldade    da vida tenham alguma responsabilidade, por menor que seja, em sua situação    não é sequer considerada. Os culpados são sempre os outros, e esses outros são    sempre os que conseguiram um grau qualquer de sucesso, mesmo modesto, naquilo    que fazem ou que são. Pouco importa se obtiveram isso em razão de mérito    pessoal – na forma de esforço próprio, talento individual ou simples trabalho    duro. Os responsáveis pelas carências alheias, na falta de alguém que possa    ser acusado de imediato, são eles. É como acontece em certas rodas de pôquer:    se depois de dez minutos de jogo ainda não deu para descobrir quem é o pato da    mesa, cuidado – é quase certo que ele seja você. No Brasil de hoje, num leque    de problemas que vai dos índios macuxis de Roraima aos meninos de rua de São    Paulo, nem é preciso esperar tanto. O culpado não vai aparecer. Prepare-se,    então, para ser denunciado.
   Tome-se o caso dos índios de    Roraima, para quem o governo deu uma reserva com área de 17 000 quilômetros    quadrados. Resulta que há, na terra demarcada para os índios, gente que pelos    mapas oficiais não deveria estar lá. Quem entra nesse tipo de bola dividida    assume riscos; mas, enquanto o Supremo Tribunal Federal delibera a respeito,    não apenas os fazendeiros que cultivam áreas na reserva se vêem em julgamento.    Vai se formando, ao mesmo tempo, um vago clima de denúncia contra os "brancos"    em geral, especialmente os que decidem ir para lugares como Roraima – ou para    a Amazônia como um todo. Em outros tempos podiam ser considerados    desbravadores, heróis ou patriotas, como o marechal Rondon ou Plácido de    Castro. Hoje são freqüentemente vistos como bandoleiros. 
   O episódio de Roraima é apenas um    entre muitos. Avança no Brasil, cada vez mais, um movimento nacional    pró-distribuição de culpa – uma espécie de xis-tudo onde qualquer ingrediente    pode entrar, desde que sirva para criar algum tipo de réu. O    brasileiro é culpado pela pobreza em sua volta, pelas violências que ele mesmo    sofre e, 120 anos depois da abolição, pelos problemas da população negra.    Também é culpado por não ir para o trabalho em transporte coletivo, de    bicicleta ou a pé. Cabe-lhe culpa pela degradação do bioma da Amazônia, do    cerrado e da Mata Atlântica, embora muitas vezes nem saiba o que é o bioma. É    acusado de não morar nas periferias, não ganhar o salário mínimo e não usar    madeira certificada. É criticado por colocar seus filhos em escolas    particulares – como se fizesse isso porque gosta de torrar dinheiro pagando    mensalidade. É culpa sua, enfim, que o Brasil seja injusto, dentro da idéia    pela qual a desigualdade é provocada por quem, individualmente, é melhor – e,    como resultado disso, tem uma vida melhor. O problema, nessa maneira    de ver o mundo, não é a escassez de maiores oportunidades para todos; é o fato    de haver recompensas diferentes para resultados diferentes. 
   O sujeito oculto de toda essa    questão, no fundo, é a hostilidade ao mérito. Ter mérito,    para os agentes do Pró-Culpa, é prejudicar alguém. Não é um ativo; é um    débito. Em vez de ser razão para incentivo, é algo a ser "compensado"    – uma maneira disfarçada de dizer desencorajado, limitado ou punido.    É animador, nesse clima, ver um político como o deputado Ciro Gomes observar    que o interesse comum só tem a ganhar com o estímulo ao mérito individual – a    "desigualdade positiva", diz ele. O deputado gosta de ver a si próprio como um    homem de esquerda; mas não acha que isso o obrigue a ser cego. O que ele    parece estar perguntando é: "Que culpa um cidadão tem de ser inteligente?". A    isso se poderia acrescentar que também não há nada de errado em ser talentoso,    eficaz ou em trabalhar mais – e, sobretudo, no fato de haver benefícios    maiores para quem produz mais e melhor. O Brasil será um país bem mais    arrumado quando tomar a decisão de concentrar-se na multiplicação de chances    para quem está pior – e deixar em paz quem está melhor. 
    
   Publicado na Veja, edição de  01.10.08