terça-feira, março 01, 2005

Ilha das Flores: Esta não é a nossa vida

Meu artigo "O Homem que copiava matou um cara na Ilha das Flores", sobre o cinema fake-realista de Jorge Furtado rendeu alguns e-mails de leitores interessados na matéria da Zero Hora citada no artigo.
Pois bem, aqui está a íntegra a matéria intitulada "Esta não é sua vida" publicada no segundo caderno da Zero Hora de 13 de março de 2004, por ocasião dos 15 anos do lançamento do filme.
Tirem suas conclusões.
O interessante é que durante 15 anos a voz dos moradores sequer foi ouvida por algum veículo da grande mídia. Pelo menos nesta ocasião, a Zero Hora cumpriu seu dever de informar e descortinar a realidade, deixando um pouco de lado a os confetes sobre esta obra "fundamental" do "cinema gaúcho" como é a praxe. O rei ficou nú.




Moradores contestam imagem da comunidade apresentada em "Ilha das Flores"

"Não era nada daquilo"

Janaína Gonçalves da Silveira, 25 anos, estava na cena em que os moradores da ilha recolhem comida.

Ela recorda que as crianças realmente corriam atrás dos caminhões que iam até a Ilha Grande dos Marinheiros para descarregar os alimentos rejeitados ou com prazo para vencer.

- Filmar era divertido, era bem diferente, mas a gente estava pensando também no dinheiro que iria receber.

Janaína só conseguiu assistir a Ilha das Flores pela primeira vez no ano passado, e comenta que teve de agüentar os comentários que seus colegas do DMLU faziam sobre o filme.

- Não era nada daquilo. O filme dizia que a gente brigava com os porcos.

"Não vivíamos com os porcos"

Eva Gonçalves Machado, 62 anos, vive desde 1972 na Ilha Grande dos Marinheiros. Diz que é um bom lugar para morar, apesar de não ter água encanada e só contar com luz elétric a há uns 10 anos.

- É bom aqui. Se pode ir a Porto Alegre de bicicleta, de carona, até a pé.

Mas o tom de voz de Dona Evinha muda ao falar do filme Ilha das Flores. Ela participou da cena que mostrava adultos e crianças esperando para entrar num pátio e recolher restos de comida. Ao lembrar como foi a filmagem, ela conta que a produção deu cachorro-quente e refrigerante para quem estava atuando. Ri quando recorda que os câmeras do filme subiam uns na costas dos outros para conseguir um ângulo melhor, mas reclama, irritada:

- Eles nos mandaram entrar no pátio junto com os porcos. A gente não fazia isso, não dividia comida com os porcos. O caminhão da Ceasa vinha no sábado, e o dono da granja, que criava porcos, separava em tonéis o que ele ia doar para o povo e o que ia para os animais.

Sua filha, Maria Solange Gonçalves da Silveira, 30 anos, também figurou na cena. Ela lembra que, naquela época, não havia nada para fazer na ilha.

- Foi uma festa, era novidade. Eu pensei que seria atriz. E eles disseram que iam voltar para mostrar o filme, mas estamos esperando até hoje.

Solange viu Ilha das Flores em 2002, ao lado de colegas do DMLU, e ficou revoltada:

- Eu dizia que não era eu, que não estava no filme.

Dona Eva conta que viu o filme no Cine Avenida, no início dos anos 90. Foi toda alegre, brincando que tinha o papel principal, ela diz que achou o curta "um esculacho":

- O porteiro do Avenida me perguntou o que eu achei. Respondi que não gostei, que estava uma porcaria.

"O filme devia deixar claro que é ficção"

Gineo Silva, 40 anos, era um dos meninos que corria atrás do caminhão. Atual vice-presidente da Associação dos Catadores de Material de Porto Alegre, lembra que na década de 80 caminhões de supermercados distribuíam de porta em porta frutas e verduras machucadas e produtos com validade por vencer. A partir de um momento, os caminhões largavam tudo na granja que aparece no curta Ilha das Flores. Lá, os alimentos eram divididos entre o que iria para os porcos e o que seria doado.

- O filme foi prejudicial para a ilha. Senti que nós, seres humanos, somos inferiores aos porcos. A gozação era na escola, nos ônibus.

Segundo Gineo, os adultos teriam recebido o equivalente a R$ 20 e as crianças, R$ 5 pela filmagem de Ilha das Flores. Ele conta que já aconteceu de universitários visitarem a Ilha Grande dos Marinheiros achando que a população divide comida com animais.

- O filme devia trazer no início uma tarja bem grande, dizendo "Esta é uma obra de ficção".

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