segunda-feira, julho 05, 2004

Artigo: Olavo de Carvalho - Evolu��o e Mito

Segue artigo de Olavo de Carvalho (jornal da tarde - 06/05)

"As discuss�es correntes sobre evolucionismo e criacionismo, ci�ncia e f�, espiritualismo e materialismo, s�o em geral bem pobres de compreens�o filos�fica, em compara��o com a riqueza de dados e argumentos que p�em em jogo. Se eu metesse minha colher no assunto, seria apenas no intuito de chamar a aten��o para algumas precau��es b�sicas que t�m sido a� bastante negligenciadas.

� que o ser humano s� tem tr�s linguagens para dar forma ao que apreende da realidade: o mito, que expressa compactamente impress�es de conjunto; a ci�ncia experimental, que descreve e explica grupos particulares de fen�menos segundo um protocolo convencional de m�todos e aferi��es; a filosofia, que faz a transi��o entre as duas anteriores. Qualquer conhecimento satisfat�rio das origens escapa necessariamente �s possibilidades da ci�ncia, j� que a descoberta delas seria apenas mais um cap�tulo do mesmo processo c�smico que se pretende explicar e n�o um miraculoso arrebatamento da mente cient�fica para fora e para cima do processo. Um evolucionismo conseq�ente teria de explicar-se a si mesmo como etapa da evolu��o, mas para isso seria for�ado a abdicar da pretens�o de veracidade literal e consentir em ser apenas mais um s�mbolo provis�rio depois de tantos, sujeito, como todos eles, a converter-se no seu contr�rio mais dia menos dia. A �nica verdade do evolucionismo � a de uma contrapartida dial�tica do criacionismo, assim como nenhum criacionismo pode existir sem deixar aberta alguma brecha evolucionista.

A intelig�ncia humana tende na dire��o de um conhecimento explicativo das origens e dos fins e sente por ele uma atra��o que � elemento constitutivo e essencial da sua estrutura; mas uma tend�ncia n�o � e n�o ser� jamais uma realiza��o. O ideal da ci�ncia como conhecimento universal apod�ctico � ao mesmo tempo uma miragem inalcan��vel e o princ�pio efetivo que d� estrutura e validade ao esfor�o cient�fico. � algo simultaneamente real e irreal ? exatamente como o significado dos mitos, que brilha na dist�ncia mas se furta a uma decifra��o cabal. Toda ci�ncia, nesse sentido, � ritual: cont�nua reencarna��o c�nica de um sentido inaugural (e ao mesmo tempo �ltimo) que nem pode desaparecer por completo do cen�rio vis�vel nem manifestar-se por inteiro dentro dele, pela simples raz�o de que o abarca e transcende. ?Nele vivemos, nos movemos e somos?, dizia o Ap�stolo.

Por isso a busca incoerc�vel e insaci�vel do conhecimento apod�ctico, tal como o conhecimento potencial que nela j� se insinua, s� � apropriadamente expressa na linguagem mitol�gica, e isso � tanto mais verdade quanto mais essa tend�ncia se amplia para abarcar a ?totalidade?. Toda teoria cient�fica ou especula��o filos�fica das origens desemboca, em �ltima inst�ncia, no mito, e acus�-la de mito n�o �, por isso, uma obje��o s�ria. Tanto o evolucionismo quanto o criacionismo s�o mitos, isto �, narrativas anal�gicas, insinua��es finitas de um conte�do infinito, separadas do seu sentido por um hiato t�o imensur�vel quanto esse mesmo sentido.

Todos os mitos giram em torno de dois modelos b�sicos: o criacionismo b�blico e o casualismo epicuriano. Entre esses dois, n�o se trata de escolher o mais "cient�fico", o que seria apenas uma confus�o de planos, uma "met�basis eis allo gu�nos" (troca de g�neros), e sim de averiguar qual o mais apropriado � express�o da estrutura da realidade existencial e portanto ao adequado posicionamento do homem no processo c�smico. Como esta estrutura � observada desde dois pontos de vista -- a confian�a dos crentes num Deus bondoso e o sentimento gn�stico de abandono --, sem que um possa suprimir o outro, de vez que ambos constituem elementos estruturais da mesma condi��o humana que se desejaria expressar, o debate deve ser transferido do terreno das pretens�es cient�ficas para o da adequa��o existencial. � no autoconhecimento, e n�o em especula��es cosmol�gicas despropositadas, que se descobre, quando se pode, a efic�cia maior e a maior legitimidade intelectual do criacionismo, o que n�o nos d� evidentemente os meios de "refutar" o casualismo, mas apenas o de desmascar�-lo como mentira existencial. Menrira existencial porque, n�o podendo explicar-se a si mesmo como etapa do processo, n�o reconhece essa sua impot�ncia constitutiva e em vez disso se refugia num arremedo de transcend�ncia, a pretens�o de certeza cient�fica final habilitada a exorcisar para sempre todos os mitos. "


Olavo de Carvalho � professor de filosofia,
diretor do Semin�rio de Filosofia do Centro Universit�rio da Cidade (RJ)
e autor de "O Imbecil Coletivo:Atualidades Inculturais Brasileiras"
Link para o artigo olavodecarvalho.org

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