quinta-feira, janeiro 05, 2006

Uma das ameaças à democracia brasileira: o "politicamente correto"

Publicado nos sites www.votebrasil.com.br e midiasemmascara.org

"Ano novo, vida nova" , é um dito popular de passagem de ano, mas pode se transformar numa realidade palpável no panorama político de 2006 – um ano eleitoral, além de tudo.


Muita análise foi feita sobre os possíveis desdobramentos dos acontecimentos políticos do ano – a saber : a implosão - "de dentro para fora" - daquilo que se chamou das "bandeiras históricas" do partido dos trabalhadores e do resultado surpreendente do referendo sobre a proibição do comércio de armas no Brasil. Boa parte delas concluía o resultado do referendo das armas como uma espécie de plebiscito do governo, revelando uma reprovação ao desmoronamento do discurso do partido vencedor em 2002. Ou seja, uma reprovação tópica de forte cunho político-partidário.


Esta é uma visão parcial dos acontecimentos. Na verdade a derrota do "sim" no referendo é o que se pode chamar de primeiro indício de que uma corrente muito maior – maior até do que as escolhas político-partidárias – foi derrotada. Esta corrente é o pensamento 'politicamente correto'.


O "politicamente correto" pode ser definido como uma espécie de 'wishful-thinking' que se auto-realiza pela repetição mântrica de palavras de ordem. As palavras são cuidadosamente escolhidas para adjetivar de modo diferenciado a realidade tendo assim o poder de, modificando a maneira de pensar sobre ela, por fim modificar a própria realidade. A premissa fundamental é de que a 'realidade' é subjetiva, sendo portanto um bem exclusivamente pessoal. Modificando-se esta visão pessoal da realidade pelo condicionamento pavloviano de repetição, se modificará por fim a própria realidade – que afinal não passa de um conjunto de realidades pessoais.


Inicialmente recebida como uma esquisitice pseudo-intelectualizada , ela foi – pela disseminação cuidadosa a partir de um núcleo denominado como 'elite cultural' – contaminando os ambientes por onde circulava. Sua chegada aos discursos de campanha e às redações das principais jornais do país marca sua proeminência no mercado das idéias políticas 'que vendem'. De onde nunca mais saiu. A partir deste ponto – definido temporalmente na década de noventa – não havia mais matéria jornalística, política ou não ou discurso político que não incorporasse componentes 'politicamente correto'. Ou não fosse incorporado por ele.


A percepção errada sobre sua verdadeira natureza levou a classe política em peso a adotá-la, não importando siglas, programas de partido, visão política e história. O resultado é que chegamos a um ponto onde todos queriam parecer e soar 'pc' (politicamente corretos). Neste processo todas as opções político-eleitorais perderam completamente a sua identidade. Partidos ditos conservadores, liberais, sociais-democratas ou socialistas passaram a ter perante o eleitorado o mesmo cheiro, cor e sabor.


A falta de "persona" político eleitoral teve o seu auge na eleição presidencial de 2002, onde todas as opções pareciam ser absolutamente iguais, restando ao eleitorado escolher critérios de desempate entre gravatas, ternos e penteados. A aparente convergência de pensamento era tão evidente que foi uma conseqüência previsível o fato de que todos os 'adversários' de 2002 acabaram formando a base de apoio do novo governo em 2003. Esta falta de identidade política causada pelo sucesso avassalador do politicamente correto é uma ameaça à democracia brasileira. A falta de um espectro amplo de opções político-partidárias é um erro que deve ser corrigido. Quando falo em opções político-partidárias, não me refiro ao número de partidos – que considero um absurdo no Brasil – mas às suas colorações políticas.


A conclusão é de que, por força do discurso politicamente correto, os partidos se transformaram em uma massa anódina de chavões e palavras de ordem, alienando-se em boa parte ao mundo real dos eleitores. O resultado do referendo foi então um aviso à classe política, para evitar os excessos do 'pc' e darem mais atenção ao mundo real.


Apesar de um aparente apoio popular ao politicamente correto, a fórmula parece esgotada. O discurso floreado cheio de boas intenções revelou afinal a sua maior vítima: a classe política. O feitiço em boa parte se voltou contra o feiticeiro. O público percebeu que por trás das boas intenções do discurso, a intenção real poderia ser bem diversa, numa re-edição à brasileira do 'duplipensar' Orwelliano. A vitória consagradora do 'não' no referendo das armas é a expressão deste esgotamento. Nunca apelos emocionais tiveram tão pouca receptividade. E nunca se falou tanto em valores como 'liberdade' e 'direitos individuais' neste país.


Que seja o símbolo de uma nova etapa da democracia brasileira. Aguardo ansiosamente pelos próximos capítulos.


Feliz Ano Novo.

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